terça-feira, 20 de outubro de 2009

Desconhecidos

Ela morava sozinha. E se sentia sozinha. Até que, cansando dessa solidão amarga, pensou em pôr um anúncio num dos murais da Universidade em que estudava. O anúncio era simples, possuía o seu número de telefone e "Procuro estudante interessado em dividir um apartamento". Por ter feito uma coisa bem simples, pensou que ninguém se interessaria, ninguém ligaria pedindo informações. E teve que dividir a solidão com os livros, com as músicas em baixo som, com a televisão por mais uns quatro dias. Assistindo ao seu programa preferido, o telefone toca. Ela não atende; na verdade, nem escuta. No intervalo comercial, o telefone toca mais uma vez. Duas. Três. Até que ela resolveu se levantar do sofá para atender. Sim. Era um "estudante interessado em dividir um apartamento". Não conversaram muito - ela já tinha desacostumado a manter uma conversa por mais de cinco minutos. Estava combinado: no dia seguinte, ele já se mudaria. Quase se arrependendo do que havia feito, uma cefaléia forte não permitiu que ela saísse de casa no outro dia. A manhã passou, a tarde passou e a noite já estava adentrando na madrugada quando a campanhia toca. Mas quem seria àquela hora? O porteiro, talvez. Ou um vizinho pedindo uma xícara de açúcar. Um rapaz alto, de boné, calçando um all-star preto, apenas diz "Boa Noite" e entra no apartamento. Como assim? Que invasão domiciliar era aquela? Quanta ousadia! Entretanto, viu duas malas no chão, resolveu responder ao "Boa Noite" e voltar para o sofá - para ler o livro que acabara de ganhar da sua madrinha. Ele parece ser extrovertido, um verdadeiro gozador, pensou ela. Ela parece ser chata, provavelmente não sabe cozinhar, por isso quis pegar alguém para fazer uma escala para o Inferno aqui, pensou ele. Depois das boas-vindas dadas, ele ficou parado na sala, sem saber o que fazer, para onde ir. Até que ela percebeu a humilde presença de um homem de 1,92 na sala e disse que o quarto dele era o segundo à esquerda. Ele não sabia que ela era uma boa pessoa, mas sozinha. Uma pessoa inteligente, mas sozinha. Uma pessoa linda, mas sozinha. E ele não sabia que no dia seguinte era o aniversário dela. Na verdade, nem ela mesma lembrava. Puxa, ele deveria ser recebido um pouco melhor, sim?, pensou alto. Ouvindo um barulho na sala, ele pergunta se ela havia falado alguma coisa. Ela disse que não, mas que ele poderia ficar à vontade, que se sentisse, de fato, em casa. Mostrou-lhe as outras acomodações da casa; pronto, agora ele já estava familiarizado. E foram dormir. Ao acordar muito cedo, ela, já melhor da dor de cabeça, resolveu fazer um café-da-manhã para ele. Sim, e ela levaria até a sua cama. Seis horas da manhã, tudo pronto, mas nada de ele acordar. Havia morrido?, pensou. Não, não, eu que acordei cedo demais, repensou. Não mais suportanto aquela expectativa, ela resolve acordá-lo. Tocou nele, ele acordou, mas ela não soube o que dizer, então disse Bom Dia. Ele, sem entender nada, não respondeu, só a olhava nos olhos. Fiz para você, disse ela, é que ontem eu estava morrendo de dor de cabeça e nem estava me aguentando. Silêncio mútuo. Bom, espero que goste, juro que não pus veneno no suco de laranja. Veneno? Ela disse VENENO?, exclamou em seu pensamento. Calma, ela disse laranja? Como assim ela sabe que eu amo suco de laranja? Estou tendo um sonho e um pesadelo ao mesmo tempo, pensou ele. Ela saiu do quarto. Ao comer as maravilhas que ela havia preparado, percebeu que havia uma carta embaixo do jarrinho da orquídea. Ele leu, saiu correndo para sala, depois correu para a varanda. Olhou para baixo, lá estava ela. Por que, meu Deus? POR QUÊ?, gritou ele, do décimo andar. E ele chorou, chorou e chorou. Chorou por uma pessoa que mal havia conhecido, que mal havia visto direito, mas pela qual já dedicava tamanho carinho, tamanho afeto. A carta, bem, a carta ele, com 62 anos, guarda até hoje. Talvez fosse ela, a garota com 19 anos, a primeira mulher que amou.

Um comentário:

Monique disse...

Tu é mara escrevendo.
Muito bom!
Beijos!